|
Gustavo Dudamel em um ensaio da Orquestra Jovem Simon Bolívar |
Músico erudito com pinta de astro pop parece uma contradição nos termos. Mas o jovem maestro venezuelano Gustavo Dudamel, de 30 anos, faz sucesso justamente por evocar astros do romantismo europeu. No pódio, exibe a cabeleira esvoaçante de Franz Liszt, os gestos extravagantes de Hector Berlioz e o talento para a liderança de Arturo Toscanini. Tais qualidades fizeram dele o maestro mais festejado da atualidade. Seus concertos tornaram-se eventos comparáveis a shows de música pop – sem prejuízo da qualidade, pois Dudamel é perfeccionista.
Nesta entrevista, concedida por telefone, ele conta como começou, ainda menino, na orquestra que hoje dirige e se tornou símbolo de educação musical. O chamado Sistema, criado há 30 anos pelo mentor de Dudamel, o maestro José Antonio Abreu, desenvolveu um método de inclusão social de crianças carentes, que Dudamel divulga pelo mundo. De Caracas, no início de sua primeira turnê pela América do Sul, à frente da Orquestra Sinfônica da Juventude Venezuelana Simón Bolívar.
QUEM É? Nasceu em Barquisimeto, Venezuela, em 26 de janeiro de 1981, filho de músicos. É casado com Eloisa Maturén e tem um filho, Martín, de 2 meses
O QUE FEZ? Aos 7 anos, foi violinista da Orquestra Simón Bolívar. Aos 18, diretor da orquestra. Dirige as orquestras Simón Bolívar, Sinfônica de Gotemburgo, da Suécia, e Filarmônica de Los Angeles
O QUE APRESENTA? Na turnê, toca obras de Mahler, Ravel e Carlos Chávez. Em São Paulo (20 e 21) e no Rio de Janeiro (22 e 23)
Quando o senhor esteve no Brasil, em 2001, não passava de um menino. Como é voltar ao país como astro internacional?
Gustavo Dudamel – Sou parte do Sistema, um projeto que mudou a vida de muitas crianças – e mudou a minha junto. Faço parte de um grupo que surgiu, cresceu e se desenvolveu com o trabalho consistente do maestro Abreu. Comecei tocando violino na orquestra. Estudei, me esforcei e me tornei diretor artístico dela. Hoje quero ver o Sistema funcionando por toda parte. A emoção de apresentar nossa arte em um país irmão é intensa. Quando nos apresentamos em Brasília, dez anos atrás, ainda integrávamos uma orquestra infantil. Agora somos artistas consagrados. Estamos mostrando obras de compositores latino-americanos, como (o mexicano) Carlos Chávez e Villa-Lobos, mas também peças sinfônicas desafiadoras da tradição europeia. É o caso da Sinfonia no 7, de Gustav Mahler. É uma proeza, mas não me considero nela um astro solitário.
O senhor acha possível implementar um projeto de educação musical como o Sistema em outros países?
Dudamel – Sei que há vários projetos sociais que envolvem educação artística na América do Sul, no Brasil, por exemplo. Não encaro a inclusão social como uma necessidade apenas dos países pobres. As necessidades das crianças são as mesmas em toda parte. O anseio pela beleza acontece em Caracas, em Los Angeles e em Gotemburgo. Vivo nesses três mundos simultaneamente, e todos estão interligados. Tenho levado adiante experiências incríveis em todos esses lugares. E em muitos outros. A prática musical, e não apenas a audição, é um exercício de disciplina e liberdade. É algo essencial para a vida. Se o Sistema fosse implantado no Brasil, tenho certeza de que seria um sucesso, pois, afinal, é um país musical.
Qual é sua opinião sobre a obra do compositor brasileiro Heitor Villa-Lobos?
Dudamel – Para mim, Villa-Lobos é um dos grandes mestres, ao lado de Mahler e Stravinsky. Por isso, sempre tocamos as obras dele.
Qual é a função da música no mundo atual?
Dudamel – A música tem a missão de salvar o mundo. Estamos experimentando a degradação da sensibilidade – e só a música pode restituir a dignidade às pessoas. Todos têm direito à beleza. E não exatamente beleza material. Pode parecer romantismo, mas restabelecê-la é uma tarefa real.
"O maestro todo-poderoso é um modelo ultrapassado.
Só causa constrangimento e revolta"
O senhor contraria a imagem consagrada do maestro ditador. Qual é seu modelo de batuta?
Dudamel – O maestro todo-poderoso é um modelo ultrapassado. Já mostrou que só causa constrangimento e revolta. Houve grandes ditadores da batuta no passado, mas um de meus modelos é o regente italiano Arturo Toscanini. Dizem que ele era insuportavelmente rigoroso durante os ensaios. Toscanini era obcecado pela perfeição e pela fidelidade à partitura. Mas também tinha um coração de ouro, prestigiava seus músicos, fazia-os crescer profissionalmente e até os ajudava nos momentos difíceis. Sou um pouco diferente. Em todos os lugares onde atuo, procuro ser um músico como qualquer outro. O maestro atual deve incentivar, deve fazer parte da orquestra. Claro que sem abdicar da liderança. A capacidade de liderar, ensaiar e estimular os músicos é fundamental.
O que o senhor persegue como artista?
Dudamel – Acho que todo músico, e aí incluo a figura do maestro, deve buscar oferecer sua concepção sobre determinada obra. Uma visão que renove e torne a obra surpreendente aos ouvidos do grande público. E que se distinga da abordagem de outros regentes. Perseguir a originalidade é manter a tradição pulsante. Se o maestro não fizer isso, estará apenas repetindo regras, e não fazendo arte.
Como o senhor faz para dividir sua vida entre Los Angeles, Caracas e Gotemburgo?
Dudamel – O entusiasmo e a confiança que gozo das orquestras com que trabalho me tornaram incansável! Além disso, é fascinante observar as diferenças entre as três culturas. Os modos de executar, de ouvir música e até de se comportar em público são muito diferentes. O divertido é levar e trazer informações e lições.
Quais são os desafios do maestro neste início de século XXI?
Dudamel – A música clássica sempre teve seu ritual, sua hierarquia, seu modo de produção, que é idêntico em toda parte. Mas até esses rituais têm mudado. Nesse processo, é preciso quebrar a rotina, levar as pessoas às salas de concerto e os jovens a praticar música. Não importa se a maior parte deles não vai seguir carreira musical. O contato com a arte fará deles cidadãos melhores.
Entrevista feita pela revista Época